O discernimento para os cristãos abrange mais do que distinguir espíritos; trata-se também de usar a razão para tomar decisões no dia a dia.
1. O QUE É DISCERNIMENTO
O discernimento é
uma prática espiritual que todo crente deve desenvolver no seu relacionamento
com o Senhor. O apóstolo Paulo recomendou aos filipenses que eles crescessem em
sabedoria e conhecimento para que pudessem escolher as coisas excelentes.
Assim, poderiam viver sem culpa e agradar a Deus até a volta de Cristo (Fp 1
.9-11). Ter sabedoria e conhecimento remete a discernir, julgar ou escolher
entre duas ou mais opções. O conselho paulino, então, expressa que devemos
desenvolver uma reflexão crítica que nos ajude na nossa santificação para
sermos melhores servos de Deus e cumprirmos os propósitos divinos na nossa
vida.
Praticar o
discernimento é reconhecer quando Deus está se comunicando com alguém, ou se é
alguma distração. Como escreveu Richard Peace, teólogo e professor de formação
espiritual, discernimento é uma maneira para distinguir as diversas vozes,
impulsos, conselhos e intuições. Isso não é fácil para aqueles que vivem uma
rotina carregada de atividades. A sensibilidade do reconhecimento depende da
intimidade que se tem com o Senhor, de quanto se está atento para ouvir e
seguir as orientações dadas pelo Espírito Santo (1 Co 2.11 -16). Terão
dificuldades em identificar a voz divina aqueles que não buscam a presença do
Senhor.
O uso do
discernimento considera tanto a tomada de decisão em assuntos corriqueiros da
vida humana como também o discernimento de espíritos. Há diferentes tipos de
discernimentos porque as escolhas também variam. O teólogo A. W. Tozer
exemplifica esse ponto no seu artigo "Como o Senhor guia". Ele
classificou quatro tipos de escolhas com que os cristãos se deparam no
cotidiano. As duas primeiras estão relacionadas às coisas que foram proibidas
ou permitidas por Deus e estão registradas na Bíblia.
A terceira é
aquela em que usamos o bom senso, a inteligência e a preferência que Deus nos
dá. A quarta refere-se aos problemas que não se encaixam nas três anteriores,
por isso exigem atuação especial do Senhor para evitar enganos.
Independentemente do tipo de escolha, podemos perceber que o Senhor é quem guia
em todas elas, seja uma decisão simples ou complicada.
2. DONS ESPIRITUAIS RELACIONADOS AO ATO
DE DISCERNIR
A passagem de l
Coríntios 12.8-10 fala sobre dons espirituais relacionados ao ato de discernir;
são eles: sabedoria, conhecimento e discernimento de espíritos. Seguindo a
interpretação dos assembleianos brasileiros, como expresso na Declaração de fé
das Assembleias de Deus, "o dom da sabedoria é um recurso extraordinário
proveniente do Espírito Santo, cuja finalidade é a solução de problemas
igualmente extraordinários" (p. 173). É para resolver algo que está além
das condições humanas e que só a intervenção divina soluciona. O outro dom, o
do conhecimento, é uma compreensão que também só provém de Deus, manifestada
pelo Espírito Santo. Da mesma forma é o discernimento de espíritos: só pelo
Espírito Santo é possível identificar as imitações malignas. Esses dons
apresentados em 1 Coríntios 12 são aqueles relacionados a situações
excepcionais que somente a atuação divina pode solucionar, independentemente do
esforço ou da inteligência humana. Na classificação de Tozer, são esses os
casos do quarto tipo de escolha.
Nós, que vivemos o
período da igreja, temos o privilégio de desfrutar da operação do Espírito Santo
no mundo. Podemos ter conhecimento da vontade de Deus porque o Espírito Santo
foi dado à igreja e a cada crente para nos guiar em toda a verdade (Jo
16.12-15). Essa atuação é consequência de Pentecostes (At 2). Dessa forma,
nossa capacidade de discernir qualquer que seja o caso, algo básico do
cotidiano ou uma situação impossível, depende de quanto estamos aptos a escutar
a voz divina.
Esse privilégio,
no entanto, pode se tomar uma distração que confunde o ato de julgamento da
pessoa. Isso ocorre quando se fala que Deus disse algo quando, na verdade, Deus
não disse. Embora seja resultado da ação do Espírito Santo, há o risco de
subestimar ou superestimar a voz divina, acrescentando ou reduzindo a mensagem
conforme a vontade pessoal desejar. Esse tipo de abuso é um perigo porque
impede alguns de viverem de maneira que glorifique o nome de Deus, levando
outros a desconfiarem da atuação do Espírito Santo e escandalizando outros, que
se afastam da presença do Senhor. A manifestação do Espírito Santo é vista com
reservas por alguns, que acreditam que as pessoas se deixam dominar pelas
emoções. O desafio, então, é deixar que Deus use mente e emoções.
3. A MENTE RENOVADA E 0 DISCERNIMENTO
A base do
discernimento pessoal está apresentada no ensino de Paulo. Com base em Romanos
12.1,2, é preciso ter compromisso com Deus, a mente renovada e uma vida em
comunhão com uma igreja. Dessa forma, a vontade de Deus pode ser conhecida.
Esses são elementos imprescindíveis para a vida cristã, não só para discernir o
bem do mal.
Ter compromisso
com Deus significa entregar a vida ao Senhor. Esse pensamento paulino é
identificado por A. W. Tozer em "Como o Senhor guia". Segundo o
autor, para ter discernimento, é fundamental que o crente se dedique à glória
de Deus e se entregue ao senhorio de Jesus Cristo. A natureza humana é
pecaminosa, "porque todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus" (Rm 3.23). Portanto, o primeiro passo é ter consciência dos pecados
e confessá-los ao Senhor. Devemos, então, ter uma vida santa e nos oferecer por
completo ao Senhor - física, espiritual e emocionalmente, isso é o culto
racional. Essa atitude de ter compromisso com Deus leva à transformação de
vida. Antes era o pecado que dominava a pessoa, mas, em Cristo, o pensamento e
as emoções são trabalhados por Deus (Rm 8.9, 10).
Aqueles que não se
dedicam à santificação não são capazes de andar segundo o Espírito de Deus
porque não é esforço humano que transforma, mas Cristo (Rm 8.1-4). Estar em
Cristo é não viver pelo pecado, mas sim ser guiado pelo Espírito Santo. Segundo
Craig Keener, em A mente do Espírito, "racional" significa que a
mente determinará como o corpo servirá a Deus. Assim, "a mente renovada
discerne a vontade de Deus (12.2), inclusive o lugar em que o indivíduo pode
ser produtivo no corpo de Cristo (12.3-8)" (p. 229). A transformação é a
reversão do intelecto corrompido, porque a mente degenerada não consegue
avaliar a vontade de Deus. Pela fé em Cristo, a vida pecaminosa é transformada
em uma vida reta. Assim, a renovação da mente significa deixar o pecado e viver
de acordo com os padrões divinos, tendo em vista não o presente, mas a era
vindoura. O resultado é o cristão usar seu corpo para servir a Cristo.
4. O DISCERNIMENTO NA PRÁTICA
As Escrituras, por
meio da operação do Espírito Santo, desempenham um papel importante na vida
humana (Cl 3.16) e servem de controle para a prática do discernimento. Por meio
delas, aprendemos sobre a salvação, Deus e sua revelação em Jesus, e nossa fé é
fortalecida. O texto bíblico é a referência do cristão, e nenhuma mensagem que
lhe é entregue está acima do texto inspirado pelo Espírito Santo. Isso aponta
para as limitações do discernimento humano. Embora tenhamos a capacidade de
avaliar o que é moralmente certo ou errado, as mensagens recebidas são uma
garantia interna de que Deus está conosco e não podem ser impostas as outros
como regra.
A oração é uma
ferramenta fundamental para o discernimento, por se tratar de relacionamento e
comunicação com Deus. Como se ora, no entanto, precisa ser avaliado. Se o
objetivo é a busca por melhor compreensão, a oração não deve ser intercessora
ou peditória. Ao contrário, é uma conversa em que se fala e, em seguida, se
cala para ouvir; é uma oportunidade para se ficar em silêncio na presença do
Senhor.
O discernimento
pode ser tanto pessoal quanto coletivo. Por pertencer a uma igreja local,
muitas vezes surgem ocasiões em que é preciso decidir sobre algo que afetará
todos os irmãos e irmãs. A prática do discernimento em grupo, como explica
Nancy Bedford em "Pequenas ações contra a destruição", envolve seguir
o caminho de Jesus Cristo com criatividade, levando em consideração não só a
vida pessoal, mas também o impacto das suas ações na família, na igreja, no
bairro, no trabalho e outras dimensões da nossa vida social. Isso demanda
organização de grupos de oração, análise dos problemas e reflexão para busca de
possíveis soluções.
Quando discernimos
a voz de Deus, é o momento de responder a ela. Essa atitude reflete nosso
interesse em nos relacionarmos com o Senhor. São diversas as maneiras como
podemos responder: com louvor, arrependimento, quebrantamento, confissão de
pecado, agradecimento e mudança de atitude. Essa atitude, então, mostra que
estamos abertos a viver e ser transformados conforme a vontade de Deus, e não
conforme a nossa própria vontade.
Fonte: SOARES,
Esequias/ SOARES, Daniele. Batalha Espiritual. O povo de Deus e a Guerra Contra
as Potestades do Mal. 1ª edição de 2018 - CPAD